sexta-feira, janeiro 26, 2024

Inquilina

Lugar nenhum é a minha casa 


A casa que eu nasci, eu já não conheci bem. 


A casa que eu cresci já não pode mais ser o meu lugar. 


A nova casa dos meus pais também não é minha.

 

Os lugares que morei sempre foram temporários demais, com muitos sonhos deixados pra frente.

 

Sonhos que nem me lembro mais quais eram.

 

Cumprimentei a todos nos elevadores, entradas, salões, sabendo que eu não ficaria ali por muito tempo.


Porque nenhuma daquelas casas eram mesmo a minha casa.


Mudei-me de novo e muito som na rua, um inferno. 


E mesmo gostando muito das árvores na janela do quarto,


Sabia que aquele não era meu quarto. 


Nova casa, mas também não era minha. 


Enfeitei os espaços que nunca foram meus. 


Eu sempre estou de passagem. 


Novos vizinhos, novas lembranças e novas plantas. 


Nada meu. 


Chegou a hora de mudar de novo, 

e volto pro lugar que não era meu. 


31 anos morando temporariamente na vida dos outros. 


Nunca confiei na beleza de nenhum dos quadros que eu pendurei. 


Sigo desabitada, sem saber se um dia terei raízes pra me sentir parte do mundo. 

Pra sentir que uma parte do mundo também é minha. 


Eu sigo inquilina. 

sábado, outubro 17, 2020

 São Paulo num dia de chuva, eu a um passo de me atrasar, mais uma vez. 


 - Oi moça.

 - Oi! Bom dia! 

 - A mala cabe aqui no banco?

 - Cabe sim. Tranquilo. 


Ele me oferece álcool em gel, nada de balinhas. 


 - A senhora vai pra onde?

 - Pra Minas. Vou ver meus pais. 

 - Olha só. Eu também sou mineiro, de BH. De onde a senhora é?

 - São Sebastião do Paraíso. É mais pro Sul de Minas. 

 - Conheço também. Tenho família em Cássia. 

 - Ah, jura? Que coincidência. Legal. 


Acabo me entretendo procurando o e-mail da passagem, e conferindo se meus documentos estão na bolsa. 


 -  Na verdade a família da minha mulher que é de Cássia. 

 - Ah sim. 

 - É...


Breve silêncio e trânsito na 23. 


 - Eu a conheci em Cássia. Num ano novo. Era pra ter passado a virada no Rio com alguns amigos, mas não deu certo. Acabei indo pra Cássia com minha irmã. Ela namorava um cara de Cássia na época. Ela e ele terminaram, mas eu nunca mais larguei minha esposa. 

 - Que bom que não deu certo pra dar certo, né? Se conheceram no Ano Novo e já ficaram juntos assim?

 - Foi. A gente teve uma coisa. A conheci no dia 28. Dia 28 pra 29, de madrugada. Ficamos juntos todos os dias lá. Na volta, ela ficou em SP e eu fui pra São José dos Campos, eu morava lá. Nunca deixamos de nos ver desde então. 

 - É. Parece que era pra acontecer... Tem muito tempo?

 - 8 anos. Foram 3 e meio de namoro e estamos casados há 4, quase 5. Temos uma filha. 

 - Legal. Fico feliz por vocês.

 - Quando eu conheci ela foi diferente de tudo,  sabe? E eu tive muitos relacionamentos antes dela...e eu soube. 

 - Amor à primeira vista? 

 - Um pouco. Depois a gente vai conhecendo e vai entendendo mesmo. Desanima com umas coisas, anima com outras...mas é que fica gostoso ficar junto, daí vai ficando. 


Silêncio mais uma vez. Olho meu celular e me amaldiçoo mentalmente por nunca sair adiantada. 


 - E a senhora?

 - Eu o que?

 - A senhora é casada? 

 - Não, não sou. 

 - Parece jovem também. 

 - Agradeço, mas não sou tanto. 

 - Mas não tem nada?

 - Nada? Hum...Eu namoro. Mas tem pouco tempo. 3 meses só. Quase 3 na verdade. 

 - Muito no começo mesmo.

 - É, às vezes parece que sim, às vezes parece que já tem muito tempo, é intenso...Vamos ver. 

 - A senhora costuma namorar? 


Dou risada. 


 - Costumo. Mas meus namoros não duram tanto. Meu máximo foi 2 anos. E tive alguns que duraram quase isso. 

 - Ah, entendo. Eu também não costumava ficar muito tempo com alguém. Meu namoro mais longo antes da minha mulher teve 9 meses. Minha mulher não, ela já teve um namorado de 6 anos antes de mim. 6 anos. 

 - Nossa! 

 - É. Mas eles não tinham a intimidade que a gente tem não. Namoraram 6 anos e a mãe dela nunca gostou do rapaz. Ela nunca tinha ido dormir na casa dele e nem ele na dela. Eu não. Na segunda visita à minha esposa, na época recém namorada, já dormi lá. Minha sogra sempre gostou de mim, desde o começo. 


Percebo o tom muito orgulhoso em sua voz. Era importante saber, ou pelo menos acreditar, que ele era a pessoa mais íntima que sua mulher já teve. 

Eu não sei quantas vezes eu tive certeza de que fui a pessoa mais íntima na vida de alguém. Passei por muitos relacionamentos com medo de ser só um “remendo”, um relacionamento que tem utilidade de tentar curar dores antigas...Ou uma substituta. 

E o contrário também. Passei por muitos dos meus relacionamentos me questionando se era eu quem estava encaixando namoros na minha carência ou algo assim. Tive meus momentos imaturos tentando descobrir o amor. Curiosamente, julgo-me hoje como alguém madura tentando o mesmo. 


 - Quando é a pessoa, o tempo passa rápido, você nem vê. E é diferente também. 

 - Imagino. Mas conviver não é fácil, né?

 - Não. É bem ruim. Mas sem a pessoa fica pior. A liberdade fica vazia se fica muito tempo longe...perde a graça. E é bom também a cumplicidade mesmo. Acho que o segredo é não deixar de mostrar pra outra pessoa que ela é especial pra você. 

 - Entendi. Acho que entendi. 


Quase chegando ao meu destino e o telefone dele toca:  


 - Mas de novo? Eu já falei que to com passageiro. Eu vou te ligar já já, mas que coisa. Tá, eu não esqueci, eu vou comprar. Tchau. 


tempo. 


 - Oh moça, esquece. Viver junto é uma bagunça. 


Então é isso? Fazer a outra pessoa se sentir especial em meio ao caos? Conseguir se sentir especial em meio ao caos? 


....


Parece uma bagunça mesmo.

segunda-feira, setembro 28, 2020

O que as flores escondem na primavera

Tarde quente e cheia de graça.  Talvez seja mais difícil se entristecer na primavera. Teriam as angústias a mesma força num dia tão bonito?

Dormir mal não é algo que me aflige como antes. Em algum momento poderei descansar, mesmo que meus afazeres demandem uma energia que não tenho, não há pressa... As delicadezas diárias de quem se conhece e aprendeu a viver consigo, não que tenha sido fácil até aqui.

Um dia mal dormido não a irá matar ninguém, ou quem sabe vários.

Sempre passo por esse prédio com grandes janelas. Gosto do estado de graça de imaginar as muitas vidas a meu redor seguindo seus cursos, sem precisarem de mim para isso. A paz de quando sinto o vento no meu rosto sabendo que o vento não pode me sentir.

Sou agradável. Com o moldar dos anos, tornei-me cordial.
Não aprendi nada disso vislumbrando solidificações num "bom-caráter", mas sim buscando menos desgaste nas minhas relações. Não sei qual doçura me acompanha naturalmente, qual parte minha nasceu comigo...

Talvez eu seja uma boa pessoa apenas por preguiça de não ser.

Ouvi hoje uma porção de coisas que não gostaria de ter ouvido. E as ouvi em silêncio. Problemas como "matar o presidente caso os aeroportos não sejam reabertos em breve para vôos internacionais".
O que eu podia ter dito?
"Tem gente morrendo de verdade enquanto isso."

Lembro-me então de uma senhora cheia de tralhas no colo, que vi dia desses. Ela estava sentada num canteiro na esquina de um prédio comercial. Olhos grandes e castanhos, estatelados. A máscara no queixo, e não se importava com o vai e vem dos que estavam passando pela rua. Parecia-se como uma estátua, não sei no que ela estava pensando. Não consegui sequer saber se ela estava triste, parecia só um corpo que esqueceu de existir.

Um corpo que não reagiria a uma bomba ou a um buque de flores.

Penso que talvez que era ela quem devesse ter propriedade pra cogitar matar um presidente. Os olhos de quem entregou tudo o que tinha até que não pudesse sentir mais nada.

O que ela teria dito no meu lugar?

Eu queria ter feito algo, não fiz. Não sei se precisava, se faria diferença...

Penso então se não somos todos observadores de grandes janelas, coexistindo só por preguiça de tentar algo novo e melhor.

A tarde se foi num dia lindo, e continuo lembrando dos olhos de angústia daquela mulher...

E agora só me resta, como muitos, tentar dormir.


domingo, setembro 06, 2020

Aeroporto em meio a uma pandemia e uma mulher chora. Chora muito. Copiosamente. É um choro com barulho, desses em que se falta o ar e o mundo ao redor não existe mais. Já sentiu isso? Uma dor que não dá pra controlar. Uma dor que foge do comportamento social, não se pode disfarçar quando somos esmagados por um elefante de existência. Uma dor que suga completamente a sua razão. 


Penso que alguém se foi. Penso em quem eu poderia perder para me sentir daquele jeito. Porque eu já perdi alguém e já me senti daquele jeito. Lembro de perder o movimento das pernas, do peito querer ir de encontro ao chão. Desconhecidos tentando me ajudar e nenhuma palavra saía da minha boca. Se eu as proferisse, aquilo seria real e eu não queria que fosse. Tudo em volta fica lento, você visita um purgatório no que acha que é a realidade. 


Mas bobagens passam pela minha cabeça também. E se aquela mulher teve problemas com um vestido de noiva que foi extraviado e era a gota final pra arruinar um casamento que já havia perdido tanto e que quase não acontecera? É isso. Há situações assim aos montes. Achamos que é importante demais e depois passa. Tomara que ela só tenha perdido um vestido e que ainda possa rir desse momento um dia. 


A dor de perder alguém nunca se transformará numa lembrança boba. Nunca. 


Depois de muitos contratempos, consigo pegar o vôo...O olhar das pessoas mudou muito: agora pessoas se olham como se a presença do outro fosse uma ameaça à sua vida.

Penso então no quanto somos primitivos e maquiamos esse comportamento ao longo dos anos. Civilidade. Existência. Consciência. Uma maquiagem muito pobre, já que o que nos move, continua intocado. O desejo pelo poder, sexo, prazeres...ou a busca de um significado pra se estar vivo. As dores mais latentes também, essas não se maquiam.


Dormi muito pouco, mais uma vez. Penso em descansar no vôo, me ajeito pra um cochilo. Fones de ouvido, e dessa vez ignoro meu livro. Fecho os olhos e respiro fundo, peço gentilmente que meus pensamentos me deixem em paz. 


A aeromoça chama: Aviso muito importante! 

Um homem se levanta. Fica nervoso ao lado dela, pega o microfone e se declara para a amada que está entre as últimas fileiras. “Momentos simples são incríveis ao seu lado, quero tê-la como companheira para o resto da minha vida.” O homem segue com a caixinha vermelha até o fundo do avião. Aplausos tímidos, todos parecem cansados. O casal se beija apaixonadamente. Penso comigo que espero mesmo que eles sejam felizes. 


Falhamos muito, somos cruéis. Mas também somos amorosos e sensíveis. 

Viver é se escorregar por um poço de lama sem saber quando vai dar pé...


A suscetibilidade humana me intriga. 

E me emociona também. 

Já se sentiu quase feliz? 

Temo estar nesse cenário. 

Explico melhor. 


Há um muro. Alguém anda sobre ele. Lá em cima o clima é bom, o vento toca o rosto com uma delicadeza que beira o amor. Você está no lugar em que queria estar. É quem consegue ser. Pudesse, silenciaria seus pensamentos... 

Está certa de que a felicidade está ali. 


Mas não pode.


Teme o gesto. 


O menor equívoco pode fazer-te rolar pelo desfiladeiro. 

Tudo a perder. 

Não é insegurança, não. É diferente. 

No fundo você sabe que não se pode evitar o grosso de si por muito tempo. 

O denso. 

O difícil. 

Você sabe que relacionamentos demandam trabalho, mas não sabe se alguém aguentaria por ti o que você aguentaria pelo outro. 

Você não sabe dizer se, caso fosse outro, aguentaria o que teriam de aguentar por ti.

Você não sabe mais como aguenta o que está em si. 

Aguentar é um verbo horrível. 

Lidar. 



Então...assobiar. 


Quando não se sabe qual movimento fazer, não faça nenhum. - ouvi isso uma vez e não me lembro onde. 

Crio música. 

Fico parada por um tempo e entendo que não há conforto genuíno em se equilibrar com tanto medo. 


Desço do muro. 


Me fiz andando em terra firme, apesar da leveza.

A minha consciência me cobra o preço. 

E eu aceito. 

Eu o pago. 


Ter uma quase-felicidade é não ter felicidade alguma. 

Ter um quase apoio, já é rolar pelo desfiladeiro. 

Quem constrói muro, não quer companhia. 

 

Você quer companhia?


Assobio e ando, inteira.

Vou construir meu abrigo. 

terça-feira, maio 14, 2019

Indigestão moderna

Eu tenho atraído moscas. 
Elas estão em mim. 
Por todos os lados só em mim. 
O lugar não importa, elas não vão embora. 
Devia me limpar e esfregar até a carne, mas elas não vão embora... a sujeira impregnada do silenciar das vontades da alma, meus desejos estão mortos e não há mais disfarce. 
Conservo uma ilusão mas não engano a natureza. 

O que está vivo sabe estar vivo?  

Obedeço minha intrínseca didática humana de seguir o fluxo como um rio, mas o rio não sabe que é rio. 
Eu sei. 
Sei que existo, que apenas tenho seguido sem pretensão de desaguar, e sei que não sou rio. 
Sorrio. 
Inconsciente doses de morfina, 
melhor ser tudo de menos, sentir dá trabalho de mais. 

Mais e mais bichos... 

Eles voando ao meu redor me obrigaram a cuspir essas palavras que cheiram a mofo. 

O céu me emocionava tanto...
Se um dia já fui poesia,
Hoje me alimento de moscas. 

sábado, julho 28, 2018


Escuro,
Breu de nós dois. 
O frio de fora
E o caos na sala.
Não sou em você 
A pessoa que tento 
Protejo teu mundo
Te sobram lamentos...

E se eu parar 
Ninguém vai perceber?
Nem adianta 
Se não for doer. 
Eu quero que doa 
Que rasgue a carne 
Te falte o ar. 
Preciso do estrago 
Quero ver não reparar. 

A gente se acostuma com o cuidado do outro 
E nada mais mortífero do que se acostumar.